domingo, 17 de agosto de 2014

Secretaria digital: mais uma chibatada nas costas do professor!


"Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade critica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de ‘irracionalismos’ decorrentes ou produzidos por certo excesso de ’racionalidade’ de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa." (Paulo Freire, 1996; p.32 in Pedagogia da Autonomia)

    A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo vem implantando a chamada “Secretaria Digital”, em algumas diretorias de ensino. Ocorre que os professores têm que realizar a digitação dos conteúdos dos diários de classe, ocorrências e seu planejamento de aulas, sem que as escolas ofereçam as condições necessárias para isto (entre elas, internet lenta, falta de computadores e tablets, falta de manutenção nas máquinas e no sistema etc).
    Mesmo quando o professor tenta utilizar seus próprios equipamentos, depara-se com a falta de acesso à Internet, para realizar este trabalho, obrigando-o a realizá-lo em casa ou na escola, (roubando seus HTPLs) sem a devida remuneração. Para complicar, muitas escolas exigem que os professores também façam os registros manuais, duplicando o trabalho. Nesse sentido, a tal “Secretaria Digital”, transformou-se em mais um dos chicotes do governo que “estalam” nas costas dos professores.
    Você sabia que muitos professores não estão aceitando esse chicote?
  Nossos companheiros da E.E. Professor José Vieira de Morais redigiram um documento no qual sustentam a impossibilidade da aplicação desse sistema devido às precárias condições de trabalho em que estamos inseridos. Analise o documento, discuta em sua escola e, como eles recuse-se a mais uma “chibatada” governamental.

Documento:
Nós, profissionais e membros da comunidade escolar da E. E. Prof. José Vieira de Moraes, de acordo com os princípios constitucionais especialmente expressos em seu artigo 1.º,  incisos II e III; artigo 3.º, incisos I e  IV, e seu artigo 5.º, incisos II e III; bem como o que determina a Lei Complementar 444, de 27 de dezembro de 1985, especialmente o contido em seu artigo 61, incisos I, II, III, IV, V e VI; em seu artigo 63, incisos VII, VIII, XI, XIII e XV, tecemos as seguintes considerações acerca do projeto de digitalização do processo pedagógico em vigor na Diretoria Regional de Ensino Sul 3:
1.     Estamos sofrendo forte pressão para digitar uma série de informações relativas a todo processo pedagógico, a partir de formulários eletrônicos determinados pelos órgãos gestores da rede de ensino. Temos notícia inclusive de escolas em que os professores o estão fazendo sob ameaças e intimidações da direção.
2.     A lei 444, em seu artigo 61, inciso I determina que o profissional tem o direito de ter a seu alcance informações educacionais, bibliografia, material didático e outros instrumentos, bem como contar com assistência técnica que auxilie e estimule a melhoria do seu desempenho profissional e a ampliação de seus conhecimentos. No que concerne a este projeto, as informações são raras e por vezes desencontradas.
3.     No inciso III, a lei prescreve: “dispor de ambiente de trabalho, de instalação e material técnico-pedagógico suficientes e adequados para que possa exercer com eficiência e eficácia suas funções;” - aqui salientamos que nossa escola não dispõe de wifi, a internet cabeada é extremamente lenta e o acesso restringe-se à uma sala onde nem todos os computadores funcionam.
4.     No inciso IV a lei prescreve: “Ter liberdade de escolha e de utilização de materiais, de procedimentos didáticos e de instrumentos de avaliação do processo de ensino-aprendizagem, dentro dos princípios psicopedagógicos, objetivando alicerçar o respeito à pessoa humana e, à construção do bem comum;” – A nosso ver, o sistema limita a liberdade de cátedra do professor e subordina o humano à máquina, pois consiste numa série de formulários padronizados que devem ser preenchidos diariamente pelos docentes. Um formulário eletrônico também é um formulário e digitalização de informações não significa necessariamente diminuição dos entraves burocráticos, esse sistema é um bom exemplo disso.
5.     No inciso V, a lei prescreve: “receber remuneração de acordo com a classe, nível de habilitação, tempo de serviço e regime de trabalho...”- Nesse interim, considerando a experiência concreta do dia a dia da sala de aula, perguntamos: os professores serão remunerados pelo aumento na carga de trabalho e das horas trabalhadas em função da adoção deste sistema? Esclarecemos que um profissional com duas aulas por turma precisa pegar 15 turmas para completar uma carga horária de 30 horas; se cada turma tem 45 alunos (em média, não raras vezes chega a 50 e até 60) e se cada disciplina deve dispor de pelo menos 2 instrumentos de avaliação no bimestre, somando-se aí as atividades de recuperação e as destinadas à alunos com necessidades especiais, cuja elaboração também consta como responsabilidade do professor de cada disciplina, pergunta-se: qual é o tempo que ele dispõe para estudar,  para preparar seus planos de aula, elaborar as atividades e corrigi-las? É certo que dispomos de 2 h/aula por semana para isso, mas, considerando que a correção das atividades de uma turma e o registro demora em média 2,5 horas, o professor precisaria, no mínimo, 70 h/aula por bimestre só para cuidar da avaliação e dos registro das notas. No entanto, o que vemos não é o aumento da hora/atividade, mas um aumento da carga de trabalho.
6.     Consta ainda no artigo 63 da Lei Complementar 444, de 27 de dezembro de 1985 a necessidade da construção de uma sociedade democrática (inciso VII); o desenvolvimento do senso crítico e da consciência política do educando (inciso VIII); a defesa dos direitos profissionais e pela reputação da categoria profissional. Assim, preocupa-nos o viés ideológico que a divulgação desse projeto pode adquirir, pois muitos pais, desconhecendo as dificuldades e a falta de infraestrutura, tenderão a considerar culpa dos professores os erros de uma sistema que ele apenas alimenta, mas que é administrado por um órgão distante da escola. Muitos pais, iludidos pelo acesso “fácil” ao produto (notas) poderá deixar de considerar o caráter arbitrário, tecnicista, padronizante e injusto do sistema.
7.     Não participamos da concepção e elaboração desse sistema de digitalização, ele está sendo implantado de cima para baixo, o que, a nosso ver, fere a autonomia da escola e o princípio da democracia apregoado pela Constituição Federal e pela própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96).
8.     Enfatizamos que nossa escola já dispõe de um sistema informatizado do processo pedagógico, amplamente aceito e aprovado pela comunidade escolar, com eficácia técnico-pedagógica reconhecida por todos os profissionais da escola. Os ganhos na qualidade de nosso trabalho, que podem ser atestado nos índices oficiais, como por exemplo o resultado de nossos alunos do SARESP, ENEM e vestibulares, se deve em grande parte pela eficácia de nosso sistema; suplanta-lo em prol de um cuja funcionalidade é, no mínimo, questionável não se justifica.
Por fim, ressaltamos que está em jogo é muito mais do que um mero capricho burocrático, são os princípios que norteiam a cidadania, a dignidade humana, a qualidade na educação pública brasileira e a democracia. Tais princípios não se coadunam com tecnicismo, arbitrariedade, sujeição e  intimidação. Por isso deixamos claro a impossibilidade de aderirmos por hora ao mencionado projeto.

São Paulo, 22 de abril de 2014.

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